terça-feira, 27 de abril de 2010

De escultores e poetas

Já foi dito que o escultor é aquele capaz de enxergar a obra pronta dentro do bloco informe de mármore e desbastar as asperezas que a cobre e então oferecê-la ao mundo. Assim é também com a poesia, área da literatura tão pouco valorizada, haja vista à quantidade de prateleiras dedicadas à prosa e aos livros técnicos em comparação às dedicadas a esta estética. Tudo bem, também não existem tantos escultores assim no mundo. São de outra estirpe.
O poeta, por sua vez, tira a poeira acinzentada que cobre a matéria que forma sua poesia, a vida. Por baixo da aridez do cotidiano, das amarras burocráticas, dos programas imbecilizadores há uma matéria sagrada, quase sempre ignorada por ser tão comum, tão bruta e assustadora.
A vida se apresenta como palco de emoções que nos sacode e desconcerta. Nos deixa rendidos diante do amor, vitimados pela sensação do medo, incapazes de reação frente à paixão, esmagados sob o peso da morte de nossos queridos.
E o poeta transforma em beleza até a morte. Foi Cecília, a Meireles que me fez pensar nisso, e um poema dela, não sobre o amor mas sobre a morte de sua avó é que me levou a escrever sobre essas coisas. Agora chega o ponto em que é melhor calar e deixá-la explicar por mim.

O crepúsculo é este sossego do céu
com suas nuvens paralelas
e uma última cor penetrando nas árvores
até os pássaros.

É esta curva dos pombos, rente aos telhados,
este cantar de galos e rolas, muito longe;
e, mais longe, o abrolhar de estrelas brancas,
ainda sem luz.

Mas não era só isto, o crepúsculo:
faltam teus dois braços numa janela, sobre flores,
e em tuas mãos o teu rosto,
aprendendo com as nuvens a sorte das transformações.

Faltam teus olhos com ilhas, mares, viagens, povos,
tua boca, onde a passagem da vida
tinha deixado uma doçura triste,
que dispensava palavras.

Ah, falta o silêncio que estava entre nós,
e olhava a tarde, também.

Nele vivia o teu amor por mim,
obrigatório e secreto.
Igual a face da Natureza:
evidente, e sem definição.

Tudo em ti era uma ausência que se demorava:
uma despedida pronta a cumprir-se.

Sentindo-o, cobria minhas lágrimas com um riso doido.
Agora, tenho medo que não visses
o que havia por detrás dele.

Aqui está o meu rosto verdadeiro,
defronte ao crepúsculo que não alcançaste.
Abre o túmulo, e olha-me:
dize-me qual de nós morreu mais.

Cecília Meireles

Sejam bem-vindos ao meu blog!

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