quinta-feira, 1 de julho de 2010

O Diabo E Os Construtores Do Convento: Memorial do Convento


O rei de Portugal sofria com pulgas em sua alcova real e os pobres eram confortados pelo amor verdadeiro, que nasce em corações livres de grandes preocupações, mesmo quando sua cama é uma esteira ou seu cobertor as estrelas.
Saramago enche nosso peito de alegria, desafia nossa percepção, e nos presenteia com uma linda história de amor entre um homem do povo, maneta, sofredor e uma mulher fantástica, que deve esconder o seu dom de ver o interior das pessoas para não ser morta na fogueira pela inquisição.
Claro que sua critica a igreja, ao absolutismo de João V, e a exaltação do homem comum contra o status quo, estão presentes nesta obra, que de certa maneira, junto com Levantado do Chão, escrito anteriormente, deu maior notoriedade ao escritor.
Mas, sobretudo, é a narrativa da história de amor entre Blimunda e Baltazar Sete-Sóis que me lembro com maior frequência. Embora ele os tenha colocado no meio de uma terrível confusão que é o pagamento de uma promessa feita por João V para garantir a sucessão ao trono, e por isto, construiu um convento em Mafra.
Nada anormal, reis cristãos fazem promessas e as fazem cumprir. Neste caso o ponto consiste no fato de que Saramago vai reconstituir com riquezas de detalhes a maneira como se deu esta construção, pela exploração de pobres, crianças, mulheres e aleijados. O próprio Baltasar Sete-Sóis trabalhou na construção, colocando um gancho no punho maneta.
Uma cena é tragicamente cômica, enquanto miseráveis carregam uma laje de muitas toneladas, barranco acima, com a ajuda de uns poucos animais, numa época chuvosa, que fazia com que a evolução se desse, apesar de muitos esforços, a uns poucos metros por dia, o Diabo aparece para assistir a cena, e fica tão impressionado que lamenta não ter ele mesmo inventado semelhante castigo para as almas do inferno.
Sim o homem é capaz de causar sofrimentos a outros que jamais serão vistos em nenhum lugar, nem no céu ou inferno, caso existam; e se há poder nas mãos desse homem, o sofrimento é proporcional à deturpação da percepção que ele tenha do seu poder.
Mas no Memorial do Convento, há também espaço para muita beleza, nas relações entre pessoas simples, e entre os sonhadores e os que os patrocinam. E nisso o Saramago tem razão, nunca faltará a estes pessoas que empurrem seus sonhos adiante, mesmo quando impossíveis, mesmo que corram risco de morrer por ele.
E entre os pequenos é que acontece o amor de verdade, Blimunda e Sete-Sóis se amam em cumplicidade, se sacrificam um pelo outro, e protagonizam uma história que leva às lagrimas, sem apelar para a pieguice, mas pela verossimilhança. E nisto ele nos coloca em crise, um amor como aquele, no campo da normalidade só acontece porque é literatura. Saramago não constrói um amor literário, ele faz um amor comum dar certo. Desconcertante.
O que vale à vida não acontece na cama real, acontece no mundo onde os pequenos pisam o chão da verdade, onde se divide o pouco que se tem, e onde se acredita que do interior das pessoas extraímos a possibilidade de nosso vôo. Esta lição eu aprendi com o Saramago; devo também isso a ele.

Memorial do Convento: eu adoro isso cara!

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Tinha Que Ser Você


Dustin Hoffman e Emma Thompson estrelam esse filme cuja verossimilhança nos deixa com certo desconforto. Ele é Hervey Shine, americano, pianista de trilhas de comerciais publicitários, frustrado por ter sonhado a vida toda em se tornar um compositor de jazz, e agora prestes a ser substituído por garotos que compõem por computador, com mais talento em menos tempo. Ela é inglesa, chamada Kate Walker, funcionária de uma empresa de aviação, em crise de idade e de solteirice, às voltas com a mãe neurótica, que confunde os papéis, requerendo uma atenção de filha, mergulhada no ópio da literatura de romances.
Harvey tem que viajar para a Inglaterra, pois sua única filha está para casar-se. Nesta viagem ele terá que reencontrar a ex-esposa, que o trocou por um milionário, e por quem ainda nutre, depois de muitos anos, uma mistura de ciúmes, orgulho ferido e algo que ele talvez ainda confunda com amor. Nessa viagem, ele encontra Kate, isso depois de ter abandonado a festa de casamento de sua filha, onde dera vexame, e de ter perdido o vôo de volta para Nova York, onde talvez tivesse chance de humilhar-se e manter o emprego do qual fora demitido por telefone.
A história dos dois nasce despretensiosamente e surpreende exatamente por este detalhe; o fim é óbvio, sabemos desde o começo que os dois ficarão juntos ao final do filme, portanto, o roteiro dá mais atenção às crises existenciais de ambos, o que dá riqueza, às vezes beirando ao niilismo, ao romance. Quando o filme termina temos a sensação de que investimos bons momentos vendo uma história que poderia acontecer na vida real, e que podemos colher contribuições valiosas para nossa própria caminhada nesse chão, onde a possibilidade das frustrações e crises é cotidiana, com a certeza de que um amor assim pode acontecer, em meio às pedras do meio do caminho.
A paixão nos torna adolescentes em qualquer idade que tenhamos, e é ela que dá cor à vida; neste sentido, toda paixão é milagrosa e curadora. O titulo original é Last Chance Harvey, e em sua ultima chance ele é salvo por um amor que nasce de alguém que acreditava estar árida, configurando uma verdade máxima, no amor a cura é mútua, quem ama cura o amado que o cura também.
Talvez o filme Tinha Que Ser Você tenha alcançado seu maior prêmio ao ter os dois atores indicados ao Globo de Ouro, nada além disso de tão significante, mas não chegará necessariamente ao posto menor de Sessão da Tarde, terá sim, a dádiva de incutir, com muita realidade, fé no amor, esse surpreendente sentimento a que nos expomos conscientemente, mas que sempre insiste em vir de onde menos esperávamos.
Assisti esse filme numa linda tarde de sábado com uma querida amiga, Priscila Gavassi, depois tomamos um café e discutimos a beleza de estarmos aqui, onde essas coisas são possíveis: o palco da vida.

Tinha De Ser Você, com Dustin Hoffman e Emma Thompson: Eu adoro isso cara!

sexta-feira, 18 de junho de 2010

A Saramago: Uma Dívida


Hoje morreu José Saramago, um dos maiores escritores em língua portuguesa, e autor de expressiva produção literária. Cerca de quarenta livros, entre poemas, contos, romances, peças de teatro, crônicas, memórias e literatura infantil, sim, ele escreveu também para crianças, embora os adultos, principalmente os que conhecem algo de sua biografia, possam desfrutar muito mais das lições de A Maior Flor do Mundo do que os pequenos leitores, talvez porque necessitem mais destas lições, também por isso.
Os que estão mais próximos de mim sabem que Saramago, definitivamente, é um dos meus autores preferidos, e que sua obra me ajuda a enxergar o mundo de uma maneira que, sem ela, certamente seria mais nublada.
Hoje que temos um dia lindo, embora o frio persista, com um sol enganador, que não nos ilude a ponto de pensarmos ser possível tirar o agasalho, mas com um céu azul magnífico, todavia, teve nublada toda a alegria que certamente deveria acompanhar este cenário em que julgamos ser impossível que uma má noticia viesse obscurecer o que se prenuncia como dia de bons momentos. Mas a noticia da morte de Saramago coloca um matiz gris em toda essa atmosfera idílica.
Estranhamente me sinto em divida com ele, como um filho que se percebe à cabeceira de morte de seu pai, e que nunca declarara devidamente a importância deste em sua vida, e fica assim, perdido entre o chorar a morte de quem ama e amargar o remorso das palavras suspensas, caladas, abortadas. E como este filho lento no ato de amar, que rememora até os acontecimentos nunca havidos, celebrando a memória daquele que se foi, e contando a todos os fatos que contribuíram para que ele se tornasse o homem que é, vou escrever nas próximas postagens pequenas lições aprendidas com Saramago em seus livros, que tive o prazer de ler ao longo dos últimos dezessete anos.
No entanto, o que cabe agora é silenciar em profundo respeito à memória, e também porque, nada há que dizer além da declaração da tristeza e do espaço que jamais será novamente ocupado. Agradeçamos pela permanência de sua obra, e lamentemos pela ausência no mundo de uma figura publica como ele.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Foto do Vilarejo em Deus Mora Num Vilarejo


Algumas pessoas me perguntaram qual era o vilarejo da foto no texto Deus Mora Num Vilarejo, bom, foi o suficiente para que eu venha dar explicações, vamos a elas.

Esta foto foi recolhida de um site na internet, de um blog sobre viagens e coisas afins, e é de uma comuna italiana, que seria correspondente ao que chamamos no Brasil de município, e chamada Vernazza, que faz parte de uma região formada por outras pequenas comunas e conhecida por Cinque Terre, na Riviera Ligure, de frente para o Mediterraneo, como podemos perceber pela foto.

Enfim, acho que cumpri, embora só agora, com minha obrigação.

segunda-feira, 31 de maio de 2010

Cem Anos e García Márquez


Cem Anos e Gabriel García Márquez
Terminei recentemente a leitura da obra magnífica do García Márquez, que é dele e também nossa, que compartilhamos não apenas de sua latinidade, mas, sobretudo, da capacidade de sonhar, de enxergar a beleza no mundo e perceber que esta realidade ordinária pode ser invadida pela beleza e pelo sonho.
Cem Anos de Solidão me foi presenteado e recebi mais que apenas um objeto de leitura, ou momentos de delicioso divertimento e contato com o Belo; conheci pessoas que farão parte da minha vida de agora para sempre.
Úrsula Iguarán, Petra Cotes, Coronel Aureliano, Pilar Ternera, Remédios a Bela, Amaranta, e claro, o cigano Melquíades, que descobriu mistérios e se divertiu com eles, que é a melhor forma de conhecer mistérios, todos eles, entre outros, me visitam a consciência vez por outra, e me aconselham, e são parte agora, disto a que chamam psiquismo e que tomo cada vez mais consciência do meu exemplar, mesmo que parcamente, e não de uma maneira tão plena como o Aureliano Babilônia.
Sem contar que a edição que me foi presenteada trouxe o discurso quando da entrega do seu Prêmio Nobel, em 1982, e que produziu em mim uma crise e uma reflexão agudas, à medida que evidencia o quanto o Brasil se afasta da história da América Latina, e quão alijados estamos dos demais países que a formam. As razões são várias e conhecidas, a dimensão continental, a língua, os problemas sociais e políticos que são por si só tão desafiadores e uma história recente que nos afastou da consciência da necessidade de lutas que estavam sendo travadas pelos nossos irmãos e que de certa forma eram lutas nossas também.
Lendo este discurso, pude entender que não apenas o Cem Anos só poderia ter sido escrito por um latino-americano, como também, que o que se chama academicamente de Realismo Fantástico só poderia ter seus maiores expoentes na America Latina.
Claro que cada experiência de leitura é única pela razão óbvia de o ser, mas a recomendação desta obra se faz necessária, mesmo que para alguns seja apenas um bom livro, e em um momento tão árido, ler um bom livro já é algo que vale muito a pena.
Cem Anos de Solidão, Gabriel García Márquez, Eu Adoro Isso Cara!

sábado, 1 de maio de 2010

Deus Mora Num Vilarejo ou Sobre Uma Musica Que eu Gosto Bastante


Por volta de 500 a. C. o território de Israel sofreu diversas invasões, o que obrigou a seu povo conviver não apenas com estranhos tomando lugar entre eles, não raras vezes com muita violência, como nos contam seus cronistas. Foram os assírios, os babilônicos, os fenícios, os gregos, os romanos, enfim, sucessivas perdas de autoridade sobre o lugar que chamavam: Terra Prometida.
Como ocorre em todas as civilizações desde tempos imemoriais, os profetas, que são na verdade outro tipo de poetas, desenvolveram uma literatura apocalíptica, que falava da esperança de um Reino que os exaltaria e que destruiria seus inimigos, e que no final dos tempos eles reinariam eternamente ao lado do senhor deste Reino numa era de paz absoluta.
Era a maneira como eles tratavam a violência e todas as angustias que se viam obrigados a enfrentar diariamente.
Mas isto cristalizou-se no que posteriormente se tornaria uma doutrina judaico-cristã, a do Reino de Deus, mas que obviamente não se constitui como outra coisa que não um elemento simbólico que dá algum alento à alma humana, de que não podemos prescindir.
A bem da verdade, de um modo ou de outro, todos esperamos o “Reino de Deus”, e nem precisamos, às vezes, que deus venha junto, dependendo do deus que se nos ofereça, é melhor que não venha mesmo.
A Marisa Monte pode não ter pensado nessas coisas quando escreveu a musica Vilarejo, junto com seus parceiros, mas certamente, seu texto teria sido considerado profético há três mil anos, e talvez o possa ser, ainda hoje, por alguns. Eis a questão, se há um Reino de Deus possível, este seria como ela escreveu, “Toda gente cabe lá, Palestina, Shangrilá”; pessoas que vivem numa realidade absurdamente cruel e os que ainda acreditam na utopia de um reino perfeito na terra. Se há um reino de Deus, deve ser assim, igual a “lares de mãe”, como aquela senhora em Cem Anos de Solidão, do García Márquez, capaz de conter os braços dos filhos, ou netos quando estes estão para cometer uma insanidade mesmo contra seus inimigos, que é isso que também faz a Compadecida de Ariano Suassuna.
Deus mora num Vilarejo, e a Marisa Monte descobriu isso e nos contou. Vou mudar para lá também, vem junto.
Eu adoro isso, cara!

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Jazz e Infância: Uma dica para se gostar de jazz


Hoje falei pelo msn com o Zépa, apelido do José Paulo, amigo querido que vi crescer, hoje ele já é papai do Edgard, um menino que também promete musicalmente. digo também promete porque me lembro do Zépa fazendo som em latas de tinta, solventes e colas na oficina de marcenaria de seu pai. Hoje ele é um baterista extraordinário, muito bom.

Ter falado com ele me remeteu à minha infância, terreno onde se plantaram as sementes de muitas coisas que cultivo até hoje, entre elas o gosto pela musica, em especial o jazz, essa linguagem tão rica e vasta que pode abarcar tudo, quer dizer, quase, não imagino um musico de jazz usando temas de funk carioca em jam sessions, não seriamente.

Ninguém me apresentou o Jazz, eu o conheci como conheci meus primeiros amigos de infância, como conheci meus primos, ele estava lá como trilha sonora das brincadeiras que eu fazia na sala da Dona Maura, mãe do Zépa, estava lá ao lado do Jorge Ben, antes de ser o Benjor; Cama de Gato; Celso Pixinga; Cassiopea; George Benson; entre outros.

Talvez por isso, quando me pedem uma dica para quem está interessado em começar no Jazz eu recorra sempre à minha primeira memória e diga Spyro Gyra, o LP Three Wishes era tocado todo dia pela manhã quando eu chegava, por solicitação minha claro. A essa altura Dona Maura já não cuidava de mim, eu já era membro da família, como ainda me considero, e ela me deixava lá ouvindo aquele "disco" mesmo enquanto alguns da casa dormiam.

Daniel Daiben, da Sala dos Professores, da rádio Eldorado, recomenda que se comece a ouvir jazz pelos cantores de jazz, e eu concordo, se voce se apaixonar por Billy Holliday, ou Ella Fitzgerald, Mahalia Jackson, ou Nina Simone, com certeza o jazz te pegou. Mas se quiser começar pelo instrumental, recomendo o fusion da década de oitenta apresentado pelo Spyro Gyra.
Spyro Gyra, Eu Adoro Isso Cara!